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TodAs EscreVemos

Um projeto de formação político-pedagógica, na área de literatura, com uma perspectiva feminista e antirracista

Camila Alexandrini

O projeto TodAs EscreVemos começou a ser pensado por mim, a partir de um vídeo, compartilhado despretensiosamente nas minhas redes sociais. Naquele momento, março de 2020, estávamos iniciando um longo período de distanciamento social e resistência política, cujas dimensões não poderíamos imaginar.

Logo em seguida, como vivia um momento em que almejava muito manter o contato e o vínculo com algumas pessoas, chamei minha ex-orientadora de mestrado, a professora Rita Lenira Bittencourt, e uma ex-parceira da Fora da Asa, mariam pessah. Além delas, vieram também Iasmin Schleder, a quem convidaria para começar a se especializar na diagramação de livros impressos, e Brenda Vidal, que havia me convidado a voltar escrever literariamente junto dela, tal como a ex-professora de cursinho que fui antes de ela entrar na universidade. E não parou por aí! Foram se juntando a nós, no ano seguinte: Bruna Morelo, Franciele Fernandes, Lívia Monteiro, Natália Morelo, Luciana Tubello Caldas e Marília Saldanha, além de um grupo de 40 oficineiras atuantes em nossas produções. O TodAs precisava ser assim, de todas. 

A tese que moveu a organização inicial do projeto começou a ser construída nos Saraus das Minas, evento organizado por mariam pessah, e que eu frequentava antes mesmo de ele ser atividade integrante da Fora da Asa durante os anos de 2018 e 2019. Além disso, tinha sido arrebatada por uma leitura que mudou muito a forma de eu trabalhar com a literatura: “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, de Glória Anzaldúa. 

Quem  nos  deu  permissão  para praticar o ato de escrever? Por que escrever parece  tão  artificial  para  mim?  Eu  faço qualquer  coisa  para  adiar  este  ato  — esvazio o lixo, atendo o telefone. Uma voz é recorrente  em  mim:  Quem  sou  eu,  uma pobre  chicanita  do  fim  do  mundo,  para pensar  que  poderia  escrever?  Como  foi que  me  atrevi  a  tornar-me  escritora enquanto  me  agachava  nas  plantações de  tomate,  curvando-me  sob  o  sol escaldante,  entorpecida  numa  letargia animal  pelo  calor,  mãos  inchadas  e calejadas,  inadequadas  para  segurar  a pena? (ANZALDUA, 2000, p. 230)

Ainda que muitas se sentissem e, de diversas maneiras, fossem desautorizadas a escrever, observava o quanto as mulheres escreviam. Passei, então, a pensar que todas as mulheres escrevem - não como ingenuidade, reconhecendo que ainda muitas não escrevem de fato, mas como manifesto de que sim, todas escrevem suas histórias, cantam suas rezas, guardam seus recortes como rastros da memória, sabem das receitas mais preciosas para quando se quer adoçar a vida ou curar a doença.

Todas fazemos prosa e poema. 

Todas escrevemos.

 

Todas escrevemos quando dizem

que falamos muito, tagarelas

ou nos definem como loucas histéricas:

o desequilíbrio é um poema de versos longos

e sentidos.

 

Todas escrevemos nas costuras de muitas atividades,

idas rápidas ao mercado,

roupas no varal,

maternagem:

um bolo que deu muito certo está na trama deste site.

 

Todas escrevemos à noite, com o silêncio da casa

e a lua

e o gato e a criança e o retrato da avó.

Ninguém escreve assim, como as aranhas desenham:

só nós. Todas.

(BITTENCOURT, Rita. 2020)

Para o lançamento do projeto, Iasmin Schleder criou artes que buscavam contemplar o que significa “todas” para nós. Escolhemos escritoras da literatura brasileira e estrangeira cujo espectro de diferenças pudesse abarcar uma totalidade que nunca se encerra em si mesma, tampouco se fecha. São elas (em ordem na imagem a seguir): Conceição Evaristo, Luciana de Abreu, Eliane Potiguara, Lyanna Alisse, Angélica Freitas e Virgínia Woolf - essa última alicerçou o nosso ‘todas’ também, quando escreve em “Um teto todo seu” (1928) que as mulheres precisam de condições materiais para escrever, já que almejávamos nos distanciar da concepção romântica (tão comum entre os homens brancos) ou burguesa (tão comum na universidade) de escrita criativa. 

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Divulgação do projeto em 2020. Criação de Iasmin Schleder.

Arquivo Pessoal. 

 

Além de identidade visual e apresentação de um posicionamento ideológico na noção de todas, essas imagens serviram como divulgação da primeira ação do projeto: uma convocatória de escritas para todas as mulheres de Porto Alegre/RS. A convocatória aconteceu durante junho de 2020, por meio de um site criado por Franciele Fernandes. 

Na apresentação do nosso site, explicamos como se deu a proposta: 

A proposta foi a de oportunizar a publicação de textos (compreendendo texto como o que faz sentido em até duas páginas A4) inéditos, em espaço  público, que motivasse principalmente as não profissionais das letras a exibirem seus trabalhos. E também a se exibirem, com alguma imagem, não necessariamente fotográfica, mas autorreferencial. Definimos também que se estenderia às mulheres trans, que a primeira edição seria restrita a Porto Alegre e que o conjunto figuraria em site com o título do projeto.

 

Recebemos mais de 160 textos! Num primeiro momento, nos alegrou imensamente o contato com tantas mulheres que escrevem em algum lugar por aí da capital gaúcha. Lemos todos os textos, revisamos sem interferir na poética escolhida por cada autora, organizamos os dados coletados no formulário de envio. São tantas as formas de se escrever e inscrever na página… Impulsionadas pelos ecos que as palavras de Glória Anzaldúa tinham provocado em nós, mesmo com medo, escrevemos e nos publicamos neste site. 

Diante deste corpo de textos, Brenda Vidal analisou o perfil das autoras. Sua análise está disponível  no nosso site: 

 

A convocatória Todas Escrevemos surge, em primeiro momento, com o desejo/objetivo de mapear a escrita de mulheres na cidade de Porto Alegre/RS. [...] O recorte de gênero nasce do viés feminista do grupo, que não só reconhece a disparidade das muheres no mercado livreiro brasileiro, da história da literatura global marcada pelo patriarcado branco, e do impacto de seus dispositivos machistas e misóginos para o atraso, apagamento e invisibilidade das mulheres neste campo, como também que quer ser mais uma iniciativa que ofereça “um teto” para as mulheres chamarem de “seu”. As mulheres são nosso foco na convocatória, mas sabemos que elas não são um bloco homogêneo. Nem aqui na convocatória, muito menos na sociedade. Por isso, fizemos questão de analisar o perfil das nossas participantes a partir dos seguintes eixos: raça, gênero, faixa etária e localização por bairro. [grifo meu]

As mulheres mais presentes no resultado da nossa convocatória continuam sendo, em sua maioria, brancas, cis e heterossexuais. Pensamos, já finalizado o período da convocatória, que faltou atenção à divulgação que conseguimos fazer. Com a falta de recursos, não era possível investir em mídias sociais, mas, ainda assim, teria sido muito importante pensar em estratégias para também convocar efetivamente as mulheres periféricas e dissidentes. De qualquer forma, foi nosso compromisso com a democratização dos espaços da literatura que nos levou a, em seguida, escrever um novo projeto para angariar fundos para a publicação física de uma coletânea.

Em 2021, fomos contempladas com o edital Criação e Formação Diversidade das Culturas, da Fundação Marcopolo. Com o valor recebido, conseguimos publicar não só a coletânea em forma física e online, mas também remunerar - ainda que não adequadamente - o trabalho de todas as envolvidas na equipe, bem como criar audiovideos com leituras dos textos que compõem a obra, como medida de acessibilidade. Na busca pela valorização da escrita de todAs, esta obra foi composta de textos da convocatória cuja autoria é de mulheres não brancas, periféricas, não cisgêneros e/ou não heterossexuais. Composta por 28 textos, essa coletânea almejou ser sobretudo um pacto de solidariedade que o selo, a partir de então, estabeleceu com todAs. Cada escritora recebeu 10 exemplares que puderam ser colocados à venda, e o valor retornado a elas próprias, além disso, fizemos doações de exemplares a bibliotecas e organizações sociais indicadas pelas autoras, totalizando uma tiragem de 500 exemplares. 

Capa da coletânea. Criação de Natália Morelo.

Arquivo Pessoal

 

As principais ações do selo até este momento foram: a) divulgação da convocatória; b) elaboração do site; c) oferta de encontros de formação na área de literatura. Deste último, tivemos dois: com a professora Rita Schmidt e com a escritora Luna Souto, ambos oferecidos para o público geral e para as mulheres que enviaram seus textos na convocatória. 

A live de lançamento desta coletânea, no dia 03 de setembro de 2021, organizada por Bruna Morelo, demonstra o afeto que foi produzir esse livro que, de muitas maneiras, reestruturou o objetivo do selo, o qual passa a ser, sobretudo, o de promover oficinas de criação literária para mulheres, buscando valorizar a produção já existente, democratizando as que foram historicamente silenciadas, bem como incentivar e assessorar a publicação solo de algumas delas, compartilhando saberes sobre a publicação, construídos durante a feitura da coletânea. 

Em março de 2021, recebemos o auxílio da lei Aldir Blanc, com a proposta de realizarmos algumas oficinas gratuitas na Fora da Asa. Foi aí que propomos, Bruna Morelo e eu, a primeira oficina de escrita para mulheres, dedicada ao gênero crônica, seguida da de contos, oferecida no mesmo semestre. 

Registros de divulgação. 

Arquivo Pessoal

Até dezembro de 2022, já são 6 edições da oficina promovida pelo selo. São elas sempre destinadas a mulheres e com o foco em diferentes gêneros textuais. Os objetivos das oficinas são sempre os mesmos, ainda que habilidades de escrita e de leitura tenham suas particularidades: escrever textos do gênero em foco, ler as suas produções, das demais participantes e de outras escritoras, publicar uma coletânea como produto final do trabalho coletivo. 

Publicar as produções das participantes tem se demonstrado ser uma grande potência das nossas oficinas, não só como convite a estar junto e incentivo à pŕópria escrita, mas também como reconhecimento desse lugar como autora e escritora. Na aba Biblio, se veem as capas das coletâneas disponíveis gratuitamente em nosso site - todas elas foram diagramadas por Lis Henz. E na aba Coletânea 2022 está a divulgação da convocatória que lançamos em 2 anos após a primeira, em comemoração à eleição de Lula e à confirmação do nosso compromisso com um Brasil para todes.

De forma muito avessa ao que Barthes afirma, em seu clássico texto, a "Morte do Autor", as mulheres sabem sim quem fala e a escrita delas está longe de ser o neutro, a destruição de toda a voz, de toda a origem. Ao assumir a posição autora tampouco querem fazê-lo de forma solitária, reivindicam seus espaços e levam consigo legiões de outras mulheres. Dito isso, também não são suprimidas pelo desejo centrado do ego, almejam encontrarem-se uma nas outras, para que, no lastro de uma vida em algum ponto compartilhada, possam se fortalecer para além da literatura (porque estamos falando sim de pessoas, não apenas de sujeitos da linguagem). 

Não há impessoalidade prévia nem posterior, são quem são, deixam de ser, são-mais. Essa voz literária não é um projeto moderno, o projeto moderno é o silenciamento dessa voz das mulheres que escrevem e contam histórias. E é também por isso que reconhecemos a força de todo investimento de tempo, espaço e escuta do que as mulheres têm a escrever. Na contramão do que propõe a tradição literária francesa falocêntrica: o renascimento da leitora há sempre de acontecer com a vitalidade da autora. 

Divulgação das oficinas. Identidade Visual.

Arquivo Pessoal. 

O fato de o projeto ter sido iniciado em uma pandemia nos colocou a obrigatoriedade de construir os encontros de forma online. Sendo, Bruna e eu, professoras já há algum tempo, não nos sentimos desafiadas pelo formato, ao contrário, percebemos que ali, ainda que em uma realidade muito adversa (a de mortes e de uma política mortífera), poderíamos fazer muito. E foi assim que se deu. Os encontros pautados pela troca, pela escuta e pela amorosidade se constituíram desde o princípio - o que fez com que nossas oficinas sempre tivessem grande procura (como se pode observar nas imagens). Além disso, estabelecemos que a duração seria fixada em 4 encontros, aos sábados, pela manhã, a fim de que diferentes mulheres pudessem estar junto, em um momento de calma em uma semana tão atribulada. As 3 horas de cada encontro sempre passaram voando, pois parecia evidente para nós e para as participantes que algo muito importante estava ali se dando. Tratava-se da constituição de uma rede de mulheres que escrevem, lêem e se conectam a partir de saberes em comum, sendo o que poderíamos aqui nomear de um feminismo interseccional.

Registro das Oficinas, 2020-2022.

Arquivo Pessoal

O único encontro que tivemos de forma presencial foi recentemente, em dezembro de 2022: a apresentação das performances orais no sarau de encerramento da oficina que propôs a produção de gêneros orais.

Registro da apresentação final da Oficina de Gêneros Orais, 2022.

Arquivo Pessoal

O que considero mais importante a destacar em nossas oficinas (ou ainda, nas nossas formações político-pedagógicas em escrita criativa e literatura) é o aprofundamento que nós e a nossa rede (Fora da Asa, participantes e pessoas que acompanham o projeto e/ou participam dele de alguma forma) temos demonstrado ter hoje do nosso papel antirracista. É preciso dizer que isso só aconteceu porque, assim como bell hooks (2013, p.31), nós nunca quisemos “abandonar a convicção de que é possível dar aula sem reforçar os sistemas de dominação existentes”. Essa convicção esteve sempre acompanhada de uma consciência crítica firmada em nosso fazer muito antes do projeto se iniciar. 

Enquanto mulheres brancas, sabíamos das formas de opressão que se estabeleciam mesmo entre mulheres. Ainda assim, havia uma porção desse debate que não se mostrava consistente para nós mesmas, e isso só se pôde acontecer a partir de uma intensa disponibilidade em construir diálogos, práticas e encontros para se pensar o antirracismo: na educação, no feminismo, nos movimentos sociais. Aos poucos, nos demos conta da importância do que estávamos fazendo: uma querida colaboradora, Aline Moura Rodrigues, por exemplo, desenvolveu uma pesquisa intitulada “Entre letras-mulheres: mulheridades e antirracismos na Améfrica Ladina” e se aproximou do nosso coletivo com o interesse em analisar a leitura de mulheres brancas de escritoras negras. É evidente que nos orgulhamos do que temos feito, mas mais do que isso temos tentado incorporar a radicalidade desta proposta. Reconhecendo os conflitos que são constantemente dispostos para quem se propõe a tal, nos vestimos de coragem em contraposição à culpa branca, ao medo ou ao receio em reconhecer-se também racista.

Não podemos nos desencorajar facilmente. Não podemos nos desesperar diante dos conflitos. Temos de afirmar nossa solidariedade por meio da crença num espírito de abertura intelectual que celebre a diversidade, acolha a divergência e se regozije com a dedicação coletiva à verdade. (hooks, 2013, p.50)

São muitos os movimentos até aqui, janeiro de 2023. Não falei das escritas no Medium, cuja ideia não se desenvolveu devido à escassez dos nossos recursos. A proposta consistia em convidar mulheres para publicar textos de sua autoria e serem pagas por isso. Não falei também das entrevistas que iniciamos e pretendemos dar continuidade. Tais entrevistas têm como objetivo divulgar e saber mais de projetos de escrita ligados à produção de mulheres. Não falei também do nosso grupo permanente de escrita, que busca ir na contramão da mercantilização da produção literária e se filia aos propósitos revolucionários da literatura. 

Decido, portanto, terminar este relato falando brevemente sobre as nossas publicações: “Sujeita”, Brenda Vidal (2021); “CORPOesiaTRANS”, Agda Pacheco Rocha (2021); “Do lado|De Fora”, Camila Alexandrini (2022); “Revoar”, Rosa Mayommbé (2022). As duas primeiras foram produzidas desde seus primeiros textos até a arte final do boneco. As escritoras foram convidadas a inaugurar o nosso selo literário; já as duas últimas foram financiadas pelas autoras e integram o selo com o mesmo objetivo de afirmar nosso compromisso com um feminismo plural. Neste processo, nossas publicações (de pequenas tiragens e de baixo orçamento) nos mostram a cada vez que é sim possível publicar. Com elas, também formamos uma equipe que contempla todas as etapas de publicação de um livro - uma equipe formada somente por mulheres - nós, todAs. 

Notas:

1. Doutora em Letras (Teoria da Literatura/PUCRS[2017]). camilalexandrini@gmail.com 

2.  ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo.  Revista Estudos Feministas, v.8, n.1, p. 229-236. Florianópolis, 2000. Disponível em:  <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880> Acesso em 31 jul. 2021.  

3.  Material de trabalho. Texto escrito e lido pela professora Rita na live de lançamento do site: https://www.instagram.com/tv/CHyqqf4Jz6w/?igshid=N2ZiY2E3YmU= 

4.  Disponível em: https://todasescrevemos.wixsite.com/meusite/an%C3%A1lise 

5. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nB8QUNo6K_A&list=PLph8a7REquf5cpdywCsQhw8KlNPsmfJnn 

6  Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RiesWpPvjRM>  

7.  hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013. 

8.  Disponível em: https://medium.com/@foradaasa 

9.  Disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLph8a7REquf52fZE8YiEAhKXPyNuYwswg 

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